quarta-feira, 27 de abril de 2016

um equívoco

"Aliás, a relação entre ambas baseava-se na tolerância e respeito mútuo e era uma mistura de conivência tácita e desprendimento. Mesmo estando em casa podiam passar quase todo o dia sem se ver, encontrando-se apenas às horas das refeições, e os seus diálogos, quase sempre uma réplica e contra réplica sobre um fundo de controvérsia, caraterizavam-se pela brevidade, dano a impressão, a um observador que não as conhecesse, de uma paz forçada, um equilíbrio subtil forjado pelo hábito e a convivência, que repousava num conflito latente ou pelo menos num equívoco"

uma aventura secreta do marquês de bradomín, teresa veiga, Cotovia, p. 16.


Absolutely

Jornal i #61: Catarina Martins: Voluntários só forçados!

Ontem, para o i,

Há sítios dos quais todos queremos guardar distância. Ou porque nos trazem más recordações, ou porque nos trazem boas recordações (“nunca voltes a um sítio onde foste feliz”) ou porque não têm características que nos agradam (beleza, luz, serenidade, temperatura) ou por qualquer outra razão, racional ou emocional. 

A vida, contudo, impiedosa como é no assalto, por vezes parece que escolhe as horas em que nos sentimos mais indefesos para nos levar aonde não queremos. O IPO é um desses sítios onde, indefesos, somos forçados a entrar. Paradoxalmente é também lá que, todos os dias, vários voluntários dedicam horas da sua vida ao o sofrimento de terceiros, sem a interferência do Estado, sem serem forçados, num ato de caridade pura.

Eu não acredito que Catarina Martins alguma vez tenha entrado num IPO. E ainda bem. Mas, de agora em diante, se for, deveria corar de vergonha depois de afirmar que o trabalho voluntário é uma “treta” que só pode existir quando houver pleno emprego. Bem vistas as coisas, compreendo a afirmação: é que Catarina Martins não reconhece uma manifestação de generosidade praticada em liberdade, nascida da iniciativa individual, voluntária e interior de cada um de nós; para Catarina Martins a solidariedade tem de acontecer através de um intermediário, o Estado, e por vezes com recurso à coação, ao pagamento de impostos. Para Catarina Martins a sociedade ideal é aquela em que a ajuda, o auxílio, a assistência é exclusivamente tarefa do Estado (a “solidariedade social”), sem reconhecer o importantíssimo papel que a Sociedade Civil e a Família devem ter. Nessa sociedade, Catarina Martins censura o trabalho de todas as IPSS que, nos últimos anos, têm ajudado várias famílias a sobreviver; nessa sociedade, existe pleno emprego, o que é da responsabilidade exclusiva do Estado. Nessa sociedade...essa sociedade não existe. Quem é que Catarina Martins quer enganar?

domingo, 24 de abril de 2016

Máscaras

Pergunta: A natureza humana é a principal matéria-prima do escritor?
Rentes de Carvalho: Sim. As pessoas não se dão conta de que andam nuas. Não importa aquela máscara que põem, para corresponderam àquilo que se espera deles. Na maior parte dos casos, as pessoas são previsíveis. Não escondem tanto quanto julgam.

E. A Revista do Expresso, edição 2268, 23 de abril de 2016, p. 59.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Jornal i #60: A importância da privacidade

Esta semana, para o i,

A 30 de janeiro de 2015, a revista “Science” anunciava o fim da privacidade, ignorando a sua importância numa sociedade democrática e num Estado de direito, dependentes da garantia de um certo grau de autonomia e privacidade do sujeito. 

A referência mais óbvia na literatura é George Orwell. Recentemente (2013), Dave Eggers escreveu um livrinho chamado “The Circle” onde defende que todas as pessoas, e não apenas aquelas envolvidas em trafulhices, têm algo a esconder, simplesmente porque fazem determinadas coisas numa esfera privada que não querem que seja pública.

Um ano mais tarde, em 2014, Glenn Greenwald respondia à pergunta “why privacy matters?” numa TED Talk, defendendo a importância daquela associada à proteção de dados numa sociedade de informação que, por si própria, facilita a vigilância das autoridades de cada indivíduo. Greenwald defende o mesmo que Eggers mas vai mais longe, sugerindo que a monitorização constante pode provocar mudanças comportamentais (manipulações, portanto), conduzindo a sociedade a um conformismo e a uma complacência pouco saudáveis. A vergonha humana e o embaraço podem ser motivações suficientes para provocar uma adaptação no comportamento desejável, legal, mas que não é mainstream. 

O tema da vigilância do Estado e da segurança nacional tem ocupado as agendas públicas, sobretudo nos EUA mas também na União Europeia (UE) – nesta matéria, duas decisões importantes do Tribunal de Justiça da UE, uma de 8 de abril de 2014 e outra, mais recente, de outubro de 2015, onde se reconheceu, entre outras coisas, que a retenção indiscriminada de dados pessoais conduz à “sensação de que a vida privada é́constantemente vigiada”. Vem isto a propósito da aprovação da Diretiva PNR sobre a retenção de dados de passageiros – um diploma que, mais cedo ou mais tarde, estará na mira deste rigoroso escrutínio do Tribunal da UE.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

estava lá

Na sua luta com o mundo, guardou-a naquele fundo da alma onde se acamam, com o passar dos dias e das horas, os remorsos que silenciosamente doem a vida inteira. Mas estava lá: entorpecendo os espíritos à sua volta, de tempos em tempos, com um desagradável sentimento de nostalgia.

Fazia-me lembrar aquela frase, escrevinhada algures, não sei por quem: "como falar do que a alma quis abolir e a memória, caridosamente, poucas vezes desenterrou?"

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Jornal i#59: Referendos: os inimigos da União

Esta semana, para o i, 

A semana passada, entre panamás e eternas promessas de bofetadas, passou despercebido um novo atentado à União Europeia e aos seus valores tradicionais: o povo de um Estado-membro participou efetivamente na construção desta pesada e burocrática estrutura. 

Imagine o leitor que, na Holanda, há um diploma que permite a realização de referendos sobre legislação da União Europeia (UE) relacionada com o país. A possibilidade de o povo participar: tal coisa nunca se viu, nem se verá, por estas latitudes onde nunca se realizou um referendo sobre legislação ou tratados da UE. 

Leio no “Telegraph” que, na passada quarta-feira, 61% dos votantes rejeitaram um acordo comercial celebrado entre a União e a Ucrânia. Apesar da sua natureza meramente consultiva – o acordo com a Ucrânia entrou em vigor no dia 1 de janeiro –, o resultado levou o governo holandês a reconsiderar a ratificação do Tratado e, imediatamente, o presidente da Comissão Europeia declarou-se “triste”. Compreendo: o povo holandês falou e não está de acordo com a parceria.

O que seria da UE se, ao menos num único Estado-membro, o povo pudesse determinar e influenciar o seu destino? O que para uns é dar voz à vontade do povo, para outros é um empecilho à concretização da utopia de uma Europa unida, nem que seja por arames.

a dança

há alguns anos que não nos cruzávamos. entretanto, envelheceu, um pouco mais magro, o rosto mais estreito e as feições esbatidas; doutorou-se, subiu na carreira e estava prestes a participar numa conferência de grande prestígio. quando nos cruzamos fiz questão de referir que tinha ido, de propósito, ouvi-lo. foi então que começou a dança. há pessoas cuja maneira de estar socialmente se assemelha a uma dança, a um ritual burilado: ao som de uma batida plena de harmonia, abalança o corpo praqui, depois prali, os gestos são coordenados e elegantes, os tiques - se os houver - são de apreço e cordialidade,  palavras alinhavas e confortavelmente colocadas numa narrativa composta por temas previamente pensados. sempre pontuais nos ensaios, não há como enganar nos passos, movimentos espasmódicos de grande beleza.

lá vão eles, dançando

quarta-feira, 6 de abril de 2016

foi assim mesmo

"fê-lo de sua espontânea vontade, sem preâmbulos."

História da Menina perdida - A Amigal Genial - Quarto Volume, Elena Ferrante, p. 129.