sábado, 10 de setembro de 2016

recordação

(...)

- "Brigado. No começo foi complicado, agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela." 
- "Cê não tem nenhuma?"
- "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um album, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Tipo: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal  e descobri que é assim, é do ser humano mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo o dia numa firma, vamos dizer, todo o dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na represa de Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?"
- "Isso."
- "Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, e peguei o álbum, só tinha aqueles retratos de casório, viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar onde a gente se conheceu"
- "E aí?!"
- "Aí que o bar tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda morava no imóvel. EU expliquei a minha história, ele falou: 'Entra'. Foi lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: 'é tudo foto do bar, pode escolher um, leva de recordação'"

Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu: "Olha a data aí no cantinho, embaixo."

- "Primeiro de junho de 1988?"
- "Pois é. Quando eu peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas, vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente se foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo vinte e cinco anos hoje, hoje, rapaz. Ali do lado da banca, tá bom pra você?"

António Prata, "Recordação", Meio Intelectual, Meio de Esquerda, p. 13.

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