segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Jornal i #82 - A Rapariga no Comboio

A semana passada, para o i,

Recordo-me apenas de dois filmes sobre as histórias de três mulheres que, de uma forma ou de outra, estão relacionadas entre si: “As Horas”, de Stephen Daldry, e “Interiores”, de Woody Allen.

No primeiro, Julianne Moore, Nicole Kidman e Meryl Streep; no filme de Woody Allen, Diane Keaton, Mary Beth Hurt, Kristin Griffith e Geraldine Page. É esse o ponto de partida de “A Rapariga no Comboio” (Tate Taylor, 2016), que nos apresenta três atrizes de uma geração nova da qual se destaca Emily Blunt, num desempenho estrondoso que deixa na sombra Rebecca Ferguson e Haley Bennett. 

A rapariga no comboio é Rachel (Emily Blunt), cujo estado físico e psicológico nos leva constantemente a desconfiar da sua culpa em relação a um desaparecimento que será o tema central do filme. Divorciada, com problemas de álcool e bastante instável, Blunt passa os seus dias no comboio entre Westchester e Nova Iorque a fantasiar obsessivamente com um casal (Luke Evans e Haley Bennett) que aparenta viver a vida perfeita que lhe escapou. Não é por acaso que Evans e Bennett vivem na mesma rua onde Rachel em tempos viveu com o seu ex-marido, a quem ocasionalmente persegue. Ou será? 

De forma algo precipitada, sem grandes cerimónias, Rachel acorda sem memória e ensanguentada, depois de mais uma noite de exageros que coincide com a noite do desaparecimento de Bennett. É então que tem início um mistério mais confuso do que intrigante. Numa tentativa bastante infeliz de misturar Alfred Hitchcock com Agatha Christie, a comparação com “Em Parte Incerta” (David Fincher, 2014) também é por demais óbvia: ambos thrillers, baseados em bestsellers, com títulos semelhantes, lançados no início de outubro e com protagonistas no feminino. Ambos tratam o tema do casamento moderno, abusos, traições e violência. “A Rapariga no Comboio” tem, felizmente, Emily Blunt, cuja representação de mulher bêbeda, perdida, inconsolável, que precisa urgentemente de ajuda nos assusta e nos faz duvidar dela própria. Rachel está psicologicamente descompensada, mas será perigosa? O rosto de Blunt vai assumindo modos e estados que não imaginamos possíveis à medida que Rachel sofre e se transfigura numa volatilidade frágil. Enfim, provavelmente, a representação de Blunt é demasiado boa para um thriller deste tipo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

uma grande aflição interior

"Não sou o Rembrandt, não sou o Velázquez, não sou o Goya. Mas ao nível português acho que fiz uma obrinha que realmente é demonstrativa de um tipo que tinha alguma coisa, uma grande aflição interior. Por esse lado, estou tranquilo."

Entrevista de Cruzeiro Seixas ao Observador, aqui.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Stringer (2)

não sei se duas temporadas chegam para me convencer da viabilidade (já não falo em interesse) de "The Wire" sem Stringer Bell. São termos incompatíveis em todos os sentidos possíveis. Acima de tudo no sentido estético. 



quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan

“For having created new poetic expressions within the great American song tradition” - é esta a justificação do júri para atribuir o nobel da literatura a Bob Dylan. Premiar a excelência não só com base num visão tradicional ou estanque da literatura - e da arte - mas com base numa visão alargada, flexível, que reconhece a relação entre várias expressões artísticas, premiando a excelência de um (enorme, é verdade) contributo para a música, poesia e literatura. Premeia-se a excelência de uma forma transversal, portanto, em tudo, em todas as artes. Premeia-se a criatividade, talvez? Premeia-se a criação, o contributo. Não interessa, nestes tempos pós modernos tudo é arte. Mas, sejamos um bocadinho tolerantes: o premiado é Bob Dylan. Viva a Pós Modernidade!

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Jornal i #80 - In America it’s all bullshit

Hoje, para o i,

Logo à chegada ouvi o tom magoado e revoltado de um taxista, esse barómetro do sentir do povo em qualquer recanto do planeta, sobre a perspetiva política e social do país que o acolheu. Gostava da América e, ao fim de 40 anos a viver por cá, dizia-se mais americano do que paquistanês. Mas esta vida bonançosa, toda regalos, às vezes tinha nuvens que traziam tristezas intermitentes e, muitas vezes, demasiadas talvez, repetia a mesma lista de queixas resumidas numa trágica sentença: “In America it’s all bullshit.” Perguntei-lhe porquê e deu-me a explicação habitual: “Because of the politicians.”

Quem o censura? Eu não, seguramente. Sobretudo pelo que temos assistido nesta última etapa da corrida presidencial nos EUA, esta variante do cinema noir. Como o jazz, os blues, os musicais da Broadway, o cinema noir tornou-se uma forma de arte americana, influenciada pelo êxodo do expressionismo alemão. Termo cunhado pelo francês Frank Nino, o noir revelou o lado negro do American dream. São geralmente filmes que exploram o rosto sinistro da condição humana, as falhas de caráter, a deslealdade nas relações sociais e a falta de crença na moral social. As narrativas constroem-se sobre uma corrupção moral: não há um verdadeiro herói, porque o herói é um vilão e simpatizamos com ele mesmo sabendo que não está do lado moral e legalmente certo. Os filmes noir dão- -nos, por isso, uma perspetiva muita pessimista sobre a vida em sociedade e sobre a existência humana, uma desolação da espécie. A verdade é que, apesar da tristeza que os carateriza, de certo modo são sempre engraçados. 

A corrida presidencial tem assumido esse lado “trágico-cómico” dos filmes noir, oferecendo-nos mais “vilões” do que propriamente “heróis”. Ambos os candidatos assentaram estratégias na destituição moral do caráter do adversário. Nos dois debates presidenciais, ambos sentiram necessidade de pedir desculpa: Hillary por causa dos 33 mil emails confidenciais e Trump na sequência de um vídeo insultuoso para o género feminino que verdadeiramente só surpreendeu os mais incautos. Ao mesmo tempo que o vídeo de Trump ganhava espaço no mainstream, os media publicavam um email de Hillary Clinton com uma série de afirmações que questionam a sua seriedade política e intelectual (entre elas, afirma a necessidade de ter uma posição em público e outra em privado, quase que compreendendo os impropérios ditos em privado por Trump, agora revelados). A autofagia está em curso; os próximos dias serão provavelmente ricos em ataques de caráter e vinganças mil entre os candidatos presidenciais, empobrecendo o debate político. No mano a mano, Clinton leva a dianteira. Desconfio até que será o próprio Trump a atribuir um papel salvífico a Clinton, facilitando o seu desempenho neste filme noir em exibição.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

mastiga-se

"A saudade vive-se, mastiga-se. É, de certa forma, a prova da felicidade. O vazio é que é insuportável"

Escreveu-me hoje, o meu Pai, nessa modernice tão útil a que chamaram WhatsApp.

domingo, 9 de outubro de 2016

Stinger

hoje o Stringer Bell vinha no mesmo autocarro que eu. Não, não vestia fato e gravata mas vinha descontraído, de fato de treino escuro, preto ou azul. Uns ténis da nike cinzento claro e umas mãos longas com dedos compridos. Passei por ele (que ia de pé, claro) para sair na minha paragem e, sim, senti aquela a aura de respeito do tragic intellectual.